Das
várias “acções” que fizemos na zona do “Mabebe” esta é recordada com uma particularidade
muito especial.
Saímos
bastante cedo do “Aquartelamento” e andámos, andámos; a parte da manhã e grande
parte da tarde desse dia decorreu dentro daquilo que se pode considerar
perfeitamente normal.
Já
a tarde ia bem avançada quando o nosso “guia” avisou, fazendo gestos para não
se fazer barulho, dizendo de forma quase inaudível que haveria alguém por
perto.
Prosseguimos
a caminhada, agora de forma mais lenta, evitando comprometer a nossa presença.
Sentimos
o cheiro a fumo, ouvimos capinar. Redobrámos de cuidados, caminhando ainda mais
lentamente, e evitando fazer todo e qualquer ruído por mais pequeno que fosse,
já que “eles” estariam próximos. Ouvíamos mesmo já vozes. A aproximação
continuou de forma tão lenta e sem o mais leve ruído que não fomos detectados.
Foi
feito o envolvimento…
Quando
deram por nós não tinham sequer hipótese de fuga. E nem sequer a tentaram…
Eram
elementos da população, sem qualquer arma de fogo. Formavam um pequeno grupo
que errava pela mata.(1) Possuíam apenas algumas “catanas”,
catanas que não lhes foram sequer tiradas.
Passada
a primeira fase de alguma perturbação, nós e eles de nervos ligeiramente
alterados, mas em que tentámos fazer-lhes perceber que não lhes íamos fazer
nenhum mal, a acalmia foi-se instalando…
Ràpidamente
a noite caíu. Comemos. E distribuímos grande parte das latas da “ração de
combate” aos elementos do grupo que mataram a fome como talvez desde há muito
não o faziam. Também isto contribuiu para fortalecer a confiança.
A
escuridão apenas não era total devido às labaredas das várias fogueiras que entretanto
se reacenderam e que iam sendo progressivamente alimentadas com os ramos que o
grupo anteriormente já cortara… e, logo que foi decidido pernoitar no local,
esses montes de ramos foram aumentados.
O
teor da conversa acabou por pôr completamente á vontade o grupo. Já tinham
ouvido falar do “Mazumbo” (2), sabiam que lá teriam uma
vida de longe melhor que aquela que tinham tido até então, se nos quisessem
acompanhar – coisa que nem puseram em causa. E sossegaram.
Também
nós nos sentimos melhor. Sabíamos que não era necessário mudar de local para
pernoitar. Aliás, nem era sequer já oportuno.
O
cansaço começou, pouco e pouco, a fazer efeito; o sono obrigou-nos a procurar
sítio onde estender o corpo. As noites são compridas e a cama não é propriamente
agradável…
Nem
a continuação da conversa dos que persistiam em mantê-la perturbava o sono dos
que já descansavam. Mas a conversa acabou por ir decaindo…
Eis
senão quando, mexida aqui, mudança de local ali, uma coçadela acolá, algo nos
perturbava. Em todas as partes dos nossos corpos sentíamos bichos a andar, a
morder-nos… Foi um alvoroço!
Lá
se aproxima um do lume e sacode a camisa. Logo outro o imita…
As
formigas obrigaram-nos, praticamente a todos, a acordar, a coçar, a levantar e
a aproximar-nos das labaredas.
Sacudimos
as camisas, as calças, as cuecas, as meias para o lume; o resto da noite foi
passado nisto.
Felizmente
as fogueiras tinham ficado acesas. Ainda bem que havia suficientes ramos
cortados que permitiram manter as fogueiras acesas até que irrompeu a
madrugada.
E
logo que foi possível prosseguimos o andamento até á “picada” onde, nesse mesmo
dia, fomos recolhidos.
[ocorrência em Nov72]
João
Leal Póvoa
*
- Notas do editor:
(1) As pessoas que erravam pela mata diziam
que viviam no “lumpenismo”.
Fantástico! A expressão só pode derivar de
“lumpemproletariado” (lumpem, pessoa desprezível, em farrapos), também
conhecido na linguagem marxista por subproletariado.
(2) O Mazumbo era uma aldeia que ajudámos
a reconstruir e onde se iam instalando as populações e guerrilheiros que se
apresentavam ou eram capturados. Connosco, a população atingiu centenas de habitantes, que tínhamos o cuidado de alimentar, mas que se foram dedicando à cultura do milho e do café após desmatarem os campos abandonados no início da guerra, produtos que comercializavam no Úcua ou no Caxito, para o que lhes fornecíamos transporte à borla.
Improvisei no Mazumbo uma escola primária para
os alunos que já vinham da escolaridade fornecida nos acampamentos do MPLA.
Não estive pelos ajustes e mandei as regras de segurança às malvas: convidei para
professor a pessoa que já tinha sido professor num daqueles acampamentos e que
havia sido capturada numa operação (ou apresentou-se, não recordo).
Após a incredulidade inicial, quando percebeu que eu falava a sério,
agradeceu-me com as mãos juntas, em jeito de prece.
Ficámos muito amigos. Eu
tratava-o por “Senhor Professor” e ele por “Senhor (ou "nosso") Alfero” e dava-lhe o apoio que os nossos escassos recursos permitiam, já que o bêbado do chefe de posto do Úcua e o merdoso do Movimento Nacional Feminino, esses, cagaram na iniciativa.
Nota especial sobre o autor do post
O Póvoa era Furriel do 1º Grupo de
Combate (GC), comandado por mim, Alferes Santos.
O Póvoa sempre foi (e continua a ser)
particularmente organizado e metódico. E um camarada muito leal, não se chame
ele João Leal Póvoa. Foi sempre o meu melhor braço direito, a quem tantas vezes
recorri para o que quer que fosse, mesmo quando a missão era difícil ou parecia
impossível.
A ele se devem textos e vídeos que ficarão
para a história. Um deles é a história em verso da CART 3564 – Os Furões,
documento que segue de perto a História Oficial da Companhia.
Sem o Leal Póvoa, a CART 3564 nunca seria
a grande Companhia que foi, é e será sempre: a alma mater dos 169 bravos da
Companhia, incluindo 41 atiradores angolanos do “recrutamento do Estado”,
designado “Grupo de Mesclagem”.
O 1º GC preparando-se para mais uma operação. No 1º plano do grupo em briefing, o Póvoa. Logo a seguir, meio encoberto, o alferes Santos a dar instruções aos bravos.
A CART 3564 foi, de longe, a melhor e mais prestigiada companhia de tropa comum, ou fandanga, como se dizia, que passou por Angola entre 1972 e 74.
Com exceção, claro, das unidades
especiais: Páras, Comandos, Fuzileiros Especiais (Fusos) e unidades especiais
compostas de antigos guerrilheiros (Grupos Especiais, conhecidos por GE’s ou
TE’s, estes em Cabinda), a par dos famosos e combativos “Flexas”, ex-guerrilheiros criados
e enquadrados pela PIDE/DGS e ainda as Unidades
a Cavalo, os Dragões
de Angola, criados no leste e que mantêm uma página no facebook, a ver
clicando AQUI.
Também havia unidades compostas por
antigos catangueses, os “Catangas” e até por refugiados zambianos (“Leais
Zambianos” ou “Leais”. Mas do que me foi dado perceber, de “especiais” teriam
pouco, limitando-se a defender interesses étnicos ou de grupo.
Desde 1962 havia ainda as milícias da
OPVDCA (Organização Provincial de Vigilância e Defesa Civil de Angola), algumas
compostas só por mulheres.
Milícias da OPVDCA do Dambi/Quitexe, em Nov.73, com uma mulher e filha capturadas numa operação nossa, de assalto ao "Q Aldeia" dos cães da FNLA. A operação merecia fazer parte dos melhores manuais de contra-guerrilha. Lembras-te, furriel Santos, O Grande, do 4º GC?
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